quinta-feira, 23 de outubro de 2014

SCORPIUS


Segundo o Zodíaco, inicia-se hoje o signo astrológico do Escorpião, que vai de 23 de Outubro a 22 de Novembro. Para celebrar este nosso signo, relembro aqui, um ciclo já publicado em 2000 no livro "Um Quarto Com Cidades ao Fundo" da extinta editora "Quasi".


1.
Nessa voz grave ao fundo do espelho
procuras os pianíssimos da
secreta criança. Duas pinças estendem-se
para a boca partindo das narinas. Apesar disso
o pescoço continua ágil cumprindo a sombra.
Reflectem-se ainda os sustos dos dias luminosos
e as tenazes do medo, a urina soltando-se,
o amor invadindo um pequeno vulto
atento à morte. Adolesce esse animal incauto
num crescendo de palavras escarlate, solta
um fluxo hemorrágico de extermínio
e expulsa o sentido
para os países onde se nasce de dia.


2.
Perguntava-lhe sempre, quem
distribuía as migalhas aos pardais do terraço,
certo que seria dela esse gesto dúctil de nutrição
de pequenos seres urbanos
que se demoram nos telhados do inverno.


Mas ela só amava
os animais negros e furtivos
os insectos selvagens e as serpentes marinhas.


3.
Tinha sempre o mesmo sonho,
dois insectos, um mar negro de pinças,
escamas esmagadas, lembrava-se
que um deles recuava antes que o outro,
uma fúria em filamentos,
lhe esmagasse o ventre
de anéis.


4.
Eles respiram num enlevamento transferido
para a zona da tempestade,
na profunda implosão das narinas
circula o ar, que outros
designaram de suspiros. Os membros
excedentes ao núcleo caminham num crescendo
reptilíneo, ao encontro da voz
que descendente
retoma a fila dos minutos mansos.


5.
Nas oscilações entre a vigília e o sono
a respiração de um desperta o outro. Ambos
se chegam para o seu lado da cama
com um grande vazio ao meio,
um simulacro de repouso na esperança
de permitir ao outro que adormeça e o deixe livre
para se voltar muitas vezes, convertido
numa estátua de sal.


6.
Quem não acordou
num quarto com uma velha porta
desconhece nas frinchas os milagres
da luz da manhã. Esse jorrante fogo
de artifício doura e apaga
o uivar vespertino
do último crepúsculo.


7.
Repara como ainda os cabelos
me nascem espessos e deslizam
no dorso. As minhas coxas são longas,
os pulsos não se entumesceram
e a minha sombra não habita os mapas.


8.
Pelo interior dos braços tantos deltas
se despenham como puros óleos, aceso
cálice de macerar violetas
vindo de um oratório antigo.



I.L.

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