quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

PUER NATUS EST NOBIS


 

Dos contos de fadas da
minha infância, este da Divina
Criança era dos mais maravilhosos. Não
faltaram os exóticos magos guiados
pela mística estrela, a noite gelada, os
mansos animais, o desvalido ermo, a pobreza
transformada em glória. O bem
sucedido parto de uma virgem, tantos séculos
antes das pesquisas genéticas. O pior
foi quando quiseram contar o Tempo
a partir desta história. Podiam ter escolhido
outra, com um fim menos cruel. Antes
a da Cinderela ou a do Príncipe Sapo, onde
todos viveram felizes para sempre. Sempre?
E o que é

 
Sempre?




I.L.
in A Disfunção Lírica, & etc , 2007

 

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Manoel de Barros (1916-2014)


O apanhador de desperdícios


Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Poesia e Morte


Finitudes
 
1
Em cada fruto a morte amadurece, escreve Eugénio de Andrade num poema do livro As Mãos e os Frutos (1948). Aqui, surge-nos iluminado por um grande poeta, um dos topos mais antigos de toda a Poesia. O amadurecer como um crescendo para a morte, ou melhor dizendo, qualquer início de uma existência é a garantia da sua cessação. Múltiplas mitologias e teogonias de Oriente e Ocidente, crenças e religiões monoteístas e politeístas reflectiram sempre a nossa mortalidade, temor e formas de a representar e transfigurar, perante o poder intemporal de entidades divinas, que por oposição aos terráqueos têm o dom da imortalidade. A vita brevis horaceana conduz-nos através das sucessivas idades históricas e estéticas delas decorrentes, ao inapagável tema da finitude, que tem na palavra poética a configuração de uma atitude elegíaca. Descendendo da Grécia antiga e saindo do paganismo para o mundo cristão, para aí assumir crenças salvíficas, tem uma nova e moderna inflexão com Rilke, onde a solidão ontológica lança o célebre apelo: Se eu gritar, quem poderá ouvir-me, nas hierarquias dos Anjos? – nas conhecidas Elegias de Duíno. Digamos, pois, que a expressão textual de uma perda ou da previsão ou proximidade dela, se consubstancia no tom menor de qualquer texto poético que traduza uma atitude de tónica disfórica acerca de qualquer transitoriedade que nos afecta: ausências de todo o género, da terra natal, de quem se ama, de uma companhia animal, da saúde própria ou alheia.
 
Muitas outras ausências, exílios e perdas se inscrevem na poesia, como a do próprio sujeito poético, a de um estado intra-uterino, que garantiria a protecção matricial, a da infância, a de crenças éticas ou religiosas ou até o próprio poder visionário e transformador da arte dos versos, porventura duvidando da afirmação holderlineana: O que permanece, os poetas o fundam. O mito de Orfeu é, sem dúvida, outra das milenares e inapagáveis legendas que, em todas as artes, da música à pintura, ao teatro, ao cinema, mais se tem inscrito na poesia, desde recuados tempos, com o seu conflito entre eros e tanathos, com um canto apolíneo que vence a morte, mas acaba derrotado por ela. No entanto, a cabeça de Orfeu, arrastada pelas águas do Ebro, depois do crime nefando das Ménades, continua a clamar o nome de Eurídice… O século XX com as suas guerras sangrentas e métodos dirigentes que provocaram horrendos genocídios, como o holocausto, o estalinismo, a bomba de Hiroshima, etc, deixaram na poesia e em todas as artes, uma profunda marca. Alguns nomes surgem imediatamente como Paul Celan, Anna Akhmatova ou Marina Tsvetáeva. E ainda a conhecida asserção (1949) de Theodor Adorno: Depois de Auschwitz não há poesia possível. Se o silêncio do horror se impunha, perante a constatação de monstruosas práticas entre humanos, privilegiando a elegia e o luto, em breve se constatou que está nas palavras e particularmente na palavra poética, dada a sua liberdade livre o genoma da transfiguração do sentido. Modaliza, mesmo através do sarcasmo, da descrença ou da ironia a sequente circunstância de permanecer vivo, para além da queda dos deuses, dos amores difíceis, da inultrapassável degradação do corpo. Resta-nos concluir, que também a poesia evidenciou o trabalho igualitário da morte, pois poderosos e mendigos terão encontro irrecusável com ela. Contudo, no poema, podemos sempre subverter esses encontros, como escreveu Sophia: Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
 
2
Comecei a publicar em 1980, desde logo com um título, Cicatriz 100%, uma clara referência a um tecido cicatricial, que pressupunha o desaparecimento de uma epiderme anterior.
 
Quase todos os títulos que se seguiram até 2012, com Ephemeras, encerram uma nítida assunção da transitoriedade da existência, da enganosa fulgurância dos inícios, do passageiro inebriamento erótico, de tudo que se perde e se torna para sempre irrecuperável. Os Solistas (1994), pretendendo evidenciar a circunstância daquele que, mesmo na criação, está radicalmente só; A Enganosa Respiração da Manhã (2002), uma espécie de carpe diem do avesso, ou outros títulos de livros ou partes integrantes, como Câmara Escura, Alguns Epitáfios, Erosivo Eros são o anúncio inequívoco dessa mundividência e representação. Igualmente Logros Consentidos (2005), A Disfunção Lírica (2007), Coisas que Nunca (2010). A utilidade ou poder salvífico da arte e mais concretamente da poesia, torna-se objecto de alguma ironia, com o percurso da escrita a ser influenciado pela crescente vacuidade das buscas humanas, que em grande parte se resumem a um hedonismo patético, a um economicismo criminoso, a tecnologias intransitivas. Mas a palavra permite sempre a subversão, a nostálgica raiva da espera. Termino com duas Artes Poéticas, respectivamente de 1994 e 2000.
 
ARTE POÉTICA II
Poluída e rútila/ é a beleza de um verso/ cercado o movente
sangue/ sobre a neve,/ lugar sem bússola onde escassos
chegam,/ sem país, sem linho, sol ou noite.
in Os Solistas.
 
ARTE POÉTICA III
O poeta disse: a inspiração/ não existe. De há muito, as
musas/ ficaram desempregadas. E desvendou/ algum método
de trabalho/ à parca assistência, altivo e contemporâneo,/
enquanto lá fora o mar e as altas palmeiras/ resistindo ao
tráfego do fim de tarde,/ pouco se interessavam/ pela carpintaria
dos versos.
in Um Quarto Com Cidades ao Fundo.
 
I.L. in relâmpago, nº 34, 2014. Página 83.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

SCORPIUS


Segundo o Zodíaco, inicia-se hoje o signo astrológico do Escorpião, que vai de 23 de Outubro a 22 de Novembro. Para celebrar este nosso signo, relembro aqui, um ciclo já publicado em 2000 no livro "Um Quarto Com Cidades ao Fundo" da extinta editora "Quasi".


1.
Nessa voz grave ao fundo do espelho
procuras os pianíssimos da
secreta criança. Duas pinças estendem-se
para a boca partindo das narinas. Apesar disso
o pescoço continua ágil cumprindo a sombra.
Reflectem-se ainda os sustos dos dias luminosos
e as tenazes do medo, a urina soltando-se,
o amor invadindo um pequeno vulto
atento à morte. Adolesce esse animal incauto
num crescendo de palavras escarlate, solta
um fluxo hemorrágico de extermínio
e expulsa o sentido
para os países onde se nasce de dia.


2.
Perguntava-lhe sempre, quem
distribuía as migalhas aos pardais do terraço,
certo que seria dela esse gesto dúctil de nutrição
de pequenos seres urbanos
que se demoram nos telhados do inverno.


Mas ela só amava
os animais negros e furtivos
os insectos selvagens e as serpentes marinhas.


3.
Tinha sempre o mesmo sonho,
dois insectos, um mar negro de pinças,
escamas esmagadas, lembrava-se
que um deles recuava antes que o outro,
uma fúria em filamentos,
lhe esmagasse o ventre
de anéis.


4.
Eles respiram num enlevamento transferido
para a zona da tempestade,
na profunda implosão das narinas
circula o ar, que outros
designaram de suspiros. Os membros
excedentes ao núcleo caminham num crescendo
reptilíneo, ao encontro da voz
que descendente
retoma a fila dos minutos mansos.


5.
Nas oscilações entre a vigília e o sono
a respiração de um desperta o outro. Ambos
se chegam para o seu lado da cama
com um grande vazio ao meio,
um simulacro de repouso na esperança
de permitir ao outro que adormeça e o deixe livre
para se voltar muitas vezes, convertido
numa estátua de sal.


6.
Quem não acordou
num quarto com uma velha porta
desconhece nas frinchas os milagres
da luz da manhã. Esse jorrante fogo
de artifício doura e apaga
o uivar vespertino
do último crepúsculo.


7.
Repara como ainda os cabelos
me nascem espessos e deslizam
no dorso. As minhas coxas são longas,
os pulsos não se entumesceram
e a minha sombra não habita os mapas.


8.
Pelo interior dos braços tantos deltas
se despenham como puros óleos, aceso
cálice de macerar violetas
vindo de um oratório antigo.



I.L.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

BACH




"(...)
Talvez não seja possível escrever sobre a música, talvez as palavras encontrem aí o seu limite: tenta dizer com palavras um intervalo de música, a entrada de um tema, o timbre de um oboé.
Tentei, uma vez: alguns fragmentos, breves textos para explicar como ouvia a música de Bach. Desisti; lembro-me de escrever uma carta a um amigo, a contar o impasse, a impossibilidade. Alguns anos passaram. Tentei novamente: um caderno crescia, entre leituras, experiências. ...Mas para onde, para que Bach - histórico, pessoal, real ou imaginário -, como dizer a música? Novo impasse. Descobria dolorosamente as fronteiras da linguagem; que nem sempre ela serve; que é preciso não pedir o impossível. E ninguém pode escrever um texto cujo tempo ainda não chegou. Mas nunca se sabe quando esse tempo chega. Escreve-se na ignorância, na escuridão.
Esse texto que se deseja, essa pura paixão não se pode escrever. Espreitar pelas portas pode-se, é fascinante; imitar um cânone, uma fuga, na estrutura de um texto, pode-se, é quase fetichista; tentar descrever paixões que a música provoca, seguindo tratados de Platão e Aristóteles, de Mattheson, Schubart e Wolff, é uma tarefa académica, interessante e arriscada, por vezes menos próxima da música do que da psicologia. Mas a música permanece inacessível, não posso dizê-la.
(...)"



Pedro Eiras
in Bach, Ed. Assírio & Alvim, Setembro 2014, pgs.31 e 32

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Eduardo Lourenço


 Do Colonialismo como Nosso Impensado


« (...)
E o regime de Salazar, em particular, "deu origem a uma das mais grotescas mitologias colonialistas de que há memória": a metrópole tinha colónias mas não as podia assumir enquanto tal e os " malabarismos luso-tropicalistas" de Freyre "forneciam a necessária caução científica a esta operação mágica".
   Depois, a falta de pensamento dos tempos coloniais ou imperiais foi herdada pelos tempos pós-coloniais, da descolonização: "Num caso e noutro: sem problemas. A não problematização da história portuguesa (com a excepção de Oliveira Martins) é uma das características capitais da consciência nacional, e essa ausência de olhar crítico sobre nós está relacionada justamente com o facto de sermos os prodigiosos autores de uma gesta de colonização que nunca nos pôs problemas. Quando os houve, e graves, foram os outros que no-los puseram." (...)»




DRC
in ípsilon , PÚBLICO, 26 de Setembro de 2014.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

LEI SÁLICA




As mulheres da família sempre
tiveram um jeito quase póstumo
de existir: guardar o lume
em silêncio, comer depois de
servir os outros, morrer primeiro.



Saíam à hora de ponta do destino
para lerem os caminhos perdidos
e coleccionavam a abdicação
em caixinhas de folha, entre bilhetes
caducados ou dentes de infâncias alheias.


Esperavam a vida toda por uma vida
próxima, de alma presa a alfinetes
no vestido preferido para o enterro,
os passos medidos nas suas varandas
a dar para o fim do mundo.


Retomo-lhes às vezes os gestos
neste meu exílio inventado,
mas acaba aqui: vou encher de corpo
a sombra, mesmo que nem tempo
me reste já para a pesar.



Inês Dias
in DA CAPO, Ed. Averno 2014, Lisboa, p.62.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Telhados de Vidro nº.19


















A GALINHA

Não era bem galinha, mas
um bicho desses ainda menor. Compravam-se
nos mercados populares ou às
galinheiras que com grandes cestos à cabeça
apregoavam na rua. O pai pediu
para agarrar com força as patas
enquanto com um cheiro de vinagre no ar
e uma faca afiada na pedra da banca
se vergava sobre a vítima
que cessava gradualmente. Foi o
primeiro episódio sangrento
que me mostrou para sempre
a insegurança do mundo.



A TEIA

Sente ao descer as escadas
que um ténue filamento se rompe. Uma
aranha fabricara de noite alguns fios
finíssimos que não resistiram à
primeira passagem matutina. Assim
o início do movimento diurno
destrói toda uma noite de labuta
de qualquer pequeno insecto.



Inês Lourenço

in Telhados de Vidro nº. 19, Maio de 2014, págs. 43 e 44.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

O INSTANTE ANTERIOR

Uma ave estremece
no instante anterior
à rigidez das asas. Também ela
apesar do sentido inato...
para sobrevoar abismos
transporta no corpo
a circulação pastosa do sangue
e a informe substância do
perseguido alimento.

In " O Instante Anterior", Texto Sentido ed., 2014.


quarta-feira, 11 de junho de 2014

Herberto Helder



a última bilha de gás durou dois meses e três dias,
com o gás dos últimos dias podia ter-me suicidado,
mas eis que se foram os três dias e estou aqui...
e só tenho a dizer que não sei como arranjar dinheiro para
                                                                          outra bilha,
se vendessem o gás a retalho comprava apenas o gás da
                                                                              morte,
e mesmo assim tinha de comprá-lo fiado,
não sei o que vai ser da minha vida,
tão cara, Deus meu, que está a morte,
porque já me não fiam nada onde comprava tudo,
mesmo coisas rápidas,
se eu fosse judeu e se com um pouco de jeito isto por
                                                       aqui acabasse nazi,
já seria mais fácil,
como diria o outro: a minha vida longa por muito pouco,
uma bilha de gás,
a minha vida quotidiana e a eternidade que já ouvi dizer
                                                        que a habita e move,
não me queixo de nada no mundo senão do preço das
                                                               bilhas de gás,
ou então de já mas não venderem fiado
e a pagar um dia a conta toda por junto:
corpo e alma e bilhas de gás na eternidade
- e dizem-me que há tanto gás por esse mundo fora,
países inteiros cheios de gás por baixo!



    
in A Morte sem Mestre, 2014, pág.57 e 58.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Carlos Drummond de Andrade



JOSÉ
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama protesta,
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,

seu terno de vidro, sua incoerência,
seu ódio - e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, pra onde?

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Thomas Bernhard


(...)
Cada escola enquanto comunidade e enquanto sociedade, cada escola, portanto, tem as suas vítimas e no meu tempo as vítimas eram, no liceu que frequentei, esses dois, o aleijado do arquitecto e o professor de Geografia, toda a baixeza (da sociedade) e toda a crueldade e terribilidade naturais enquanto doença dessa comunidade eram todos os dias descarregadas sobre esses dois, eram sobre esses dois levadas a explodir. Os seus padecimentos devidos à fealdade ou à incapacidade física eram todos os dias ridicularizados pela sociedade enquanto comunidade, que não pode suportar tais padecimentos, e com essa ridicularização tornavam-se um motivo de escárnio com que todos, alunos e professores, se divertiam constantemente, sempre que para isso surgia oportunidade, e também aí, nesse liceu, como em toda a parte quando se reúnem pessoas e sobretudo quando estão juntas em massas tão horríveis como nas escolas, o padecimento de um só ou o padecimento de alguns, como o padecimento do aleijado do arquitecto ou o padecimento do professor de Geografia, tornam-se objecto do seu infame divertimento, que não é senão uma repugnante perversidade.
(...)


in AUTOBIOGRAFIA, Ed. Sistema Solar, Lisboa 2014, pág.115.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Vítor Nogueira


ANZOL


Ao fim da tarde, o cardume desagrega-se. Inteiro,
procuro reunir os meus pedaços. É a sensatez
de não abandonar o esconderijo, a prudência
com que a ave canora evita o pássaro-da-morte.

Porém, noites há que me rebentam nos ouvidos.
Todas as experiências, todos os bocados de papel.
Um anzol à minha espera, a cidade é paciente,
não perdoa. Tem a astúcia da ave de rapina.

Bem sei: na vida, o primeiro golpe de génio
acontece no momento em que avaliamos
as nossas limitações. Mas, por muito calculistas
que sejamos, podemos realmente conhecer-nos
quando o abrigo se torna insuportável.



in BAGAGEM DE MÃO, Ed. & etc , Julho 2007, pág. 46.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

A Língua Portuguesa



"A língua portuguesa, para aqueles que a amam e nela vivem e se exprimem, tem um imenso património acumulado em séculos de literatura, tem uma gramática que hoje em dia é cada vez mais descurada, transporta uma visão do mundo que nos identifica e em que nos reconhecemos, tem valores próprios e possibilidades expressivas extraordinárias
O meu objectivo naquilo que escrevo, objectivo sempre frustrado mas sempre reiterado, como o esforço de Sísifo, é o de que cada texto seja uma plena declaração de amor à minha língua. Amor intelectual, amor sensual e também amor profundamente oficinal, na luta pela expressão em que sinto necessidade de me realizar como utente qualificado dela. Amar, defender e valorizar a língua portuguesa deve ter para nós uma dimensão ética, uma dimensão estética, uma dimensão cívica e uma dimensão prática. Sem esse amor, visceralmente radicado em nós e inextrincavelmente entrosado nestas quatro perspectivas, não se nos torna possível o conhecimento do mundo"

Vasco Graça Moura in JL 910, de Agosto de 2005

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Dia Mundial do Livro


Livros usados

Tudo que se disse depois e
ainda se diz, pode estar num usado
exemplar de Crime e Castigo ou da Utopia.
Os livros usados – mesmo
que se chamem Utopia
têm aquela terna docilidade
das páginas em que outras
mãos passaram, ao contrário
dos novos, que em rígidas e
intactas páginas são só apenas
papel impresso.


E para escassos amigos, quando
se fugiu duma livraria de
consumíveis tops,
talvez seja essa
a melhor oferta.


I.L. 2007

terça-feira, 15 de abril de 2014

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Ao desafio

http://www.correiodoporto.pt/cultura/ao-desafio-com-ines-lourenco

DESAFIO COM INÊS LOURENÇO

Se algum dia pudesse disfarçar-se de relâmpago, onde e quando gostaria de fazer faísca?

Esse "fazer faísca" a que se refere o poema COISAS QUE NUNCA, publicado no livro do mesmo nome, em 2010, na & etc, reporta-se a um tempo da infância, onde "Há coisas que nunca/tivemos em criança e perdem/o valor para sempre". Logo esse faiscante relampejar tem apenas um valor textual, que cada leitor adoptará segundo a sua própria sensibilidade.

Quem é que gostaria de morder com justa causa?

Creio que algumas vítimas das possíveis mordeduras, símbolos das repressões infantis, já nem fazem parte do número dos vivos. No entanto, creio, que se voltasse a esses tempos ou mesmo sendo criança na actualidade, não falta gente para morder com justa causa.

Acha bonito escrever e/ou dizer palavras feias?

Não sei o que são "palavras feias". Se a pergunta se refere a algum vernáculo, que esporadicamente utilizo na escrita, este faz parte do léxico da Língua Portuguesa e é, como se sabe muito usado oralmente. Mas não sou apologista do uso gratuito desses vocábulos, mas apenas se o sentido do texto os chama.

Não se considera uma pessoa mal educada quando à hora marcada não aparece e ainda por cima dá uma qualquer desculpa?

Os poetas são, regra geral, mal educados, pois, se o são realmente (poetas) têm de rejeitar muito do senso comum e do politicamente correcto que lhes é legado e impingido pelo mainstream, em favor de mundividências outras.

O apelido da Maria Tobias era, por acaso, a Malhada ou a Zebra?

Pois a Maria Tobias existiu, realmente, com esse nome. Era uma sem-abrigo preta e branca, a que os vizinhos chamavam "o gato". Adoptámos o animal convencidos de que era macho castrado, e como nada sabíamos da sua biografia começou-se a chamar-lhe "Tobias", por ser um nome curto e fonicamente agudo, o que torna mais fácil e eficaz o chamamento. Só passados uns dias é que se verificou o engano; e como ela já dava pelo nome, assim ficou, embora tivéssemos concordado que o nome "oficial" passaria a ser Maria Tobias.

Será uma contradição ou talvez não, sendo poetisa, dizer que não confia no poder dos versos?

A Poesia é desde tempos longínquos aquela expressão literária que mais questiona os diversos poderes. Já Platão em A República sentenciava que os poetas deviam ser expulsos, pois que eles não procuravam a Verdade. E a grandeza da Poesia será, talvez, o facto de ser a única "liberdade livre", segundo a feliz alusão de Rimbaud que não é subserviente a nenhum poder: político, religioso, moral, inclusivé ao poder gramatical ou do sistema língua, na acepção saussureana, pois a poesia permite-se desfazer a sintaxe, a pontuação, utilizar a fonética e a semântica, segundo a "arte poética" de cada autor. Por isso muitos poetas escrevem contra os regimes despóticos que cerceam a liberdade de expressão.

Como consegue acender a luz em casa se apagou à mão os interruptores?

Suponho que agora há umas coisas chamadas censores, que nos poupam o esforço...

Penteia os poemas com madeixas claras para serem parecidos consigo?

Esse poema é uma evocação de uma autora, por cujos textos não tenho nenhum apreço.

Quando a mãe lhe dizia para não olhar para os rapazes era porque naquela altura eles eram feios?

Claro que não, aliás nessa época costumava dizer-se que os homens não se queriam bonitos...Mas é óbvio que uma menina dessa década devia ser comedida e reservada nos olhares.

Recebe com frequência cartas com folhas em branco?

Como toda a gente é raro receber cartas manuscritas, mas sim mails e sms.

Ainda desconfia dos poetas (e poetisas, certamente), que falam muito de luz, das manhãs e das árvores?

Prefiro, sem dúvida uma poesia que perfilhe o desencanto, as grandes perguntas acerca da vida e da morte, mesmo com palavras quotidianas, do que uma poesia levezinha, do contentamento e de um panteísmo fácil, com palavras ditas "bonitas". Neste desafecto também incluo um certo erotismo de pacotilha, que pretende ser muito libertador, mas que bate sempre na mesma tecla, com mais ou menos zonas erógenas ou objectos de desejo, mas que se transforma numa repititiva chatice.

Ao dizer que só nós nos lemos uns aos outros também se está a referir a mim?

Certamente, se tiver livros publicados ou a publicar.

É habitual ter pruridos nas costas, irritantes e passageiros que logo se esquecem?

Remeto para o poema "Passageira", na pág. 10 em A Disfunção Lírica.

Já alguma vez falou ou escreveu sobre batatas novas, que costumam aparecer antes da Páscoa?

Remeto para o poema "Sessão Literária", na pág. 13, do mesmo livro.

Sofre ou já sofreu de disfunção lírica? Em caso afirmativo, qual a receita para a ultrapassar? Será que vem n’A BULA?

Essa disfunção tem a ver, precisamente, com a modificação de um certo conceito de lirismo, que ainda confunde biografia com sujeito lírico e ainda não percebeu que os bons poetas têm uma outra linguagem e um outro olhar que não o do senso comum. Não conheço receituário para nada que diga respeito à Arte, pois ela está sempre por fazer.

Por que está tão convicta que os seus poemas não farão parte de um livro adoptado nas escolas?

Porque nas escolas se apresentam textos para a função lírica e não para a disfunção...Ressalvo, é claro, os nossos grandes poetas, desde quinhentos, que infelizmente, cada vez se estudam menos.

Têm sido úteis as últimas transfusões?

Sim. A última grande transfusão foi o magnífico livro de Herberto Helder, Servidões. Agora ando a ler um volume de prosa de um autor que muito prezo: Autobiografia de Thomas Bernhard.

As palavras que habitam ao relento não são suas, de quem serão?

Se habitam ao relento não têm morada certa...

Continua a ser bom ter poucos amigos poetas?

Depende das alturas da vida. Mas o meu conceito de poeta tem a ver mais com o paradigma do escriba arredio, que se isola e não com o conceito de grupo jantante ou de tertúlia em que se pratica a "negociatazita", do tu fazes uma crítica em tal pasquim e eu incluo-te na próxima antologia de poesia que organizar ou então no evento tal ou tal...

Considera-se uma mulher adiantada em relação às mulheres da sua geração?

O que fazemos, realizámos ou pensamos depende muito de factores biográficos, incluindo a época em que nos coube viver. Mas, certamente, estive sempre confrontada com uma certa censação de estar fora de contexto...Até porque não temos de aceitar, servilmente, os modelos herdados, mas sim estar sempre disponíveis para as perguntas que não têm resposta.

Por gostar de roupa no corpo significa que é anti naturismo?

Confesso que acho incómodo estar na areia duma praia ou noutro sítio qualquer ao ar livre sem uma protecção têxtil. Além de poder ser até perigoso e anti-higiénico. Os animais têm a sua pelagem, que corresponde à nossa roupa. Creio que em alturas pré-históricas, os nossos antepassados cavernícolas eram providos de densa pilosidade que os protegia de agressões várias. Mas a milenar evolução trouxe-nos até a esta epiderme sem cobertura...

Um dia disse que era filha de mãe incógnita (não sabia quem era a mãe), o que é contrariado com as lembranças da sua infância. É ou não filha de mãe incógnita?

Mais uma vez remeto para o poema CÂMARA ESCURA (2), na pág. 22 do livro Logros Consentidos, 2005, & etc, que mais uma vez joga com os modelos do feminino mais dramáticos e provocadores de alguns mitos, elegendo-os para origem matricial, pois repito a ideia de que muitas vezes, se não a maior parte das vezes, temos que eleger os nossos pais, na História da Cultura e do Pensamento, que pouco terão a ver com os nossos pais biológicos.

Já encontrou nos olhos do seu gato, os dias maiores de Abril?

Não tenho gato, ao presente, embora tenha saudades dos que se foram e nos olhos dos quais encontrei frequentemente a fagueira alegria de estar vivo.

Se nenhuma janela resiste, com tiras de papel impresso, que faz um poeta entre destroços?

Pouco. Relembro o poema do grande Paul Célan, escrito num campo de concentração nazi e que se intitula "Fuga da Morte", em tradução do nosso grande germanista João Barrento.

É assim tão ingénua para consentir nos logros?

Logro ou lograr ou logradouro também pode ter uma conotação positiva. Deixo ao leitor a escolha desse percurso semântico.

A que sabe a música passada por ovo e pão ralado?

Já não se suporta e dá más digestões...

Quem disse que a solidão é um ser de Inverno?

Tanta gente!...

Sempre é verdade que a poesia portuguesa sofre de maldicções?

Isso, cada leitor de poesia é que sabe.

Tem orgulho em ser do norte e, por isso, não ser casta nem cauta na linguagem?

Não sei se tenho orgulho, não tive qualquer interferência nisso, como todos nós. Mas sim, gosto do Norte e sinto que aqui é a minha Terra.

Antes de apagar os interruptores com a mão escolhia com frequência lâmpadas de quinze velas? Em caso afirmativo, não ficava intoxicada com o monóxido de carbono?

Mas essas lâmpadas eram inofensivas, devido à sua pequena voltagem, se bem me lembro do texto.

Seria um anjo a criança que naquela tarde de névoa, quando foi ao quiosque comprar um jornal qualquer, lhe pediu algo que não entendeu?

Não faço ideia. Acho que todos os seres têm a sua parte angélica e a sua parte malsã. E depois há as inúmeras combinatórias: mais percentagem de anjo ou mais percentagem demoníaca...

segunda-feira, 31 de março de 2014

Cintilações da Sombra 2

 
 
antologia poética - Coordenação: Victor Oliveira Mateus


O poema abaixo integrou esta antologia:



ANTES

 

No princípio não era o verbo
mas o antes. Não-lugar onde
nenhum mantimento
era  necessário. Mesmo isso
a que chamam palavras, cadeias
servis de contágio e contagem,
não tinha qualquer serventia.

 

Era muito antes da cisão
da luz e da treva e
da fábula fatal de qualquer
existência. Muito antes da
invenção maligna de Cronos e
de outros princípios divinos. Muito
antes do negro e do branco,
do bem e do mal, do macho
e da fêmea.

 

Desnecessários eram,
por inúteis: searas e ceifeiros,
rebanhos e pastores, senhores e servos,
possuidores e coisas possuídas. Antes,
muito antes
do amor, do sangue e da sede, antes
da viagem, antes da subida, antes
do declive. Desde sempre
muito antes da morte.

 
Inês Lourenço
In A Disfunção Líríca, & etc, 2007, Lisboa

 

 




terça-feira, 25 de março de 2014

O Sonho de Wadjda


(...)
"Conheci Wadjda, uma rapariguinha de 10 anos que não se conforma a ser diferente. Ela tem um amigo da mesma criação, naquela idade em que rapazes e raparigas ainda podem ter algum convívio. E estão sempre a competir. Ele tem uma bicicleta e ela aposta que seria capaz de andar mais depressa do que ele se tivesse uma também. Mas uma bicicleta não é coisa para meninas, sobretudo das bem-comportadas, socialmente aceites. A ambição dela é, assim, coisa pouca - uma bicicleta -, mas vai desunhar-se para conseguir uma. É claro que o que ela quer mesmo é coisa muito maior: ser igual a ele.
  "O Sonho de Wadjda" é um filme de uma espantosa acuidade no desenho da situação feminina na Arábia Saudita, onde uma mulher não pode conduzir um automóvel, fora de casa deve vestir uma burka negra até aos pés, é normal estar casada aos 15 anos com um marido arranjado pela família, a quem deve obediência. Ele, todavia, pode ter mais do que uma mulher, pois a letra do Corão permite a poligamia. Extraordinário é que as autoridades tenham permitido a uma mulher, Haifaa Al-Mansour, realizar um filme num país onde as salas de cinema são proibidas e onde não há nenhuma tradição de produção (bem diferente do que se passa no Egipto, mesmo ali ao lado). "O Sonho de Wadjda" é, por isso, muito mais do que um filme. É um gesto - e que ninguém se engane com o seu ar afável e cálido. É de combate e de duro combate que se trata. Como em "Esposas e Concubinas" de Yimou, em "Offside - Fora-de-Jogo" de Panahi, em "O Destino", de Chahine, o cinema leva-nos lá longe para nos mostrar gente que sentimos aqui perto, combate também nosso."


Jorge Leitão Ramos, in ATUAL 22 de Março 2014

quinta-feira, 20 de março de 2014

Dia Mundial da Poesia


Passageira

 

O poema que não
surpreende nem afirma
a inutilidade de si, nem ensina
a olhar a certa dissolução
das coisas, nem interroga
o desencanto

 

É uma espécie de prurido
nas nossas costas, coisa
irritante e passageira
que logo se esquece.


I.L.
in A Disfunção Lírica (2007)
 
 
 
REESCRITA
 
Fender os versos
com a lâmina implacável do
tempo. No umbigo do poema cravar
o sabre rente às vísceras dos verbos,
à linfa de adjectivos. Despedaçar
os músculos dos sentidos. Abrir
a rede viária do sangue. Romper
a velha epiderme.
 
 
 
I.L.
in Coisas que Nunca (2010)
 
 

 

segunda-feira, 17 de março de 2014

Luís Filipe Castro Mendes


É verdade, somos do Sul.
Teve razão em reparar em nós.
Somos aqueles que passámos
de pedreiros e mulheres-a-dias,
que cumpriam as suas tarefas
com modéstia e simplicidade,
a devedores alegres e inconscientes,
que vivem à custa dos sacrifícios
dos operários da Renânia-Palatinado.
Somos nós mesmos, gnaedige Frau.

Sim, eu li como viveram os seus pais
nesse ano em que perderam a guerra:
nas caves encharcadas
de prédios em ruínas,
com esmolas avulsas
dos soldados da Ocupação.

Mas reparou
como depois foram tratados
pelos vencedores?

Sim, você disse-me também
que desde a adolescência
não compreende
que tenha de pagar
pelas culpas dos seus pais
e dos criminosos
que governaram o seu povo,
antes mesmo de você ter nascido.

Mas se para a vossa língua
dívida e culpa
são a mesma palavra,
então seremos nós agora a pagar
até aos netos dos nossos netos,
já que as vossas dívidas estão saldadas?
É isso, gnaedige Frau?



'Conversa no Tiergarten' in "A misericórdia dos mercados", Assírio & Alvim 2014

segunda-feira, 3 de março de 2014

A BULA de Março

http://www.correiodoporto.pt/a-bula/a-bula-de-marco

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

António Guerreiro


" Um homem entrou num café onde se encontrava a sua ex-companheira e matou-a com um tiro: esta é a primeira parte de uma notícia que pudemos ler na semana passada em vários jornais e que, de tão repetida, já não tem o valor de uma notícia, mas de uma enumeração. A segunda parte também segue um modelo: o homem foi depois entregar-se à polícia. Os uxoricidas ou se entregam à polícia ou se suicidam. Aquilo de que não há notícia é que se tenham suicidado ou entregado à polícia preventivamente, para não cometerem o homicídio. Em comparação com a violência política, racial e entre povos e nações, a violência dos homens sobre as mulheres fornece matéria para o livro negro mais volumoso da história universal. A lógica social da "dominação masculina" (para utilizarmos o título de um livro de Bourdieu cuja tradução portuguesa foi publicada pela Relógio d'Água) deixou os seus traços - e de que maneira! - na linguagem: a ética da virilidade refere-se ao vir, ao virtus. O princípio da honra surge assim indissociável da virilidade física. A relação entre os géneros - que os gender studies analisam como social e culturalmente construída - surge assim marcada por este princípio de violência do homem sobre a mulher. (...) As estatísticas mostram que as mulheres entraram em força, no último século, nos lugares que antes eram dominados pelos homens; e que a divisão sexual do trabalho se alterou radicalmente. Mas o que as estatísticas não mostram é que a hierarquia se vai reconstruindo, como as relações de dominação se restabelecem, de outra maneira, no interior dos territórios que pareciam ter-se libertado delas. É o que acontece quase sempre nos meios exclusivos dos gays: reproduzem no seu território princípios de discriminação que têm como matriz a violência heterossexual. A misoginia e a violência física e psicológica dos homens sobre as mulheres encontraram ao longo da história cauções essencialistas e filosóficas como nenhum outro crime. Talvez apenas o anti-semitismo (mas só nalguns momentos) possa ser comparável. (...) Para Weininger, há uma equivalência entre a Mulher e o Judeu: ambos são privados de personalidade, privados de um Eu, falhos de grandeza e de valor próprio. Daí o axioma weinigeriano: "A mulher mais elevada está infinitamente abaixo do homem mais ínfimo". Mulheres e judeus são, do ponto de vista de Weininger, responsáveis pelo declínio do Ocidente. Weininger era judeu (convertido ao protestantismo) e homossexual."



in O continente negro são os homens, Estação Meteorológica, ÍPSILON - PÚBLICO Janeiro 2014

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Thomas Bernhard


Este é um dos meus autores favoritos, desde há muito.
A propósito da próxima edição, da editora Sistema Solar, de Autobiografia de Thomas Bernhard, relembro aqui um poema que publiquei em 2005.


Thomas Bernhard

Dediquei-lhe um poema, há mais
de dez anos, para o qual certamente
se estaria nas tintas, se o lesse. É
um dos raros escritores que conseguiu
a difícil lucidez de detestar a pátria, essa
obrigatória e durável fonte de equívocos
e mal-entendidos. Por isso
ele gostava de passar temporadas
em Portugal, não pelo mar, nem
pela comida, nem pelos modos
amigáveis para turistas, mas sim
porque podia escutar uma língua
sem ter de entendê-la.


in Logros Consentidos, Ed. & etc , Lisboa 2005, pág.42.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Pisar o risco


   Nunca pensei chegar a esta altura, após o restabelecimento em Portugal de uma democracia participativa, em que um governo dito legítimo, tome decisões políticas e administrativas, que mercê da sua inadequação à Constituição vigente e a outras leis do país, tenham de ser anuladas pelos tribunais. Aconteceu isso já, por diversas vezes, no caso de cortes em ordenados e subsídios. Agora foi a máxima humilhação, com os advogados da leiloeira Christie's a meterem o governo português na ordem e a mandá-lo ser mais escrupuloso e decente.
   Como é que havemos de educar as crianças, ou recomendar modelos de actuação aos jovens, quando os poderes mais altos da nação vivem  da trapaça, da negação do óbvio e de pisar o risco?
   E depois ainda há quem se admire de que a juventude se desinteresse da política e se entretenha em grupelhos secretos e praxes baseadas na humilhação e no mais violento disparate. Como dizia o outro, isto anda tudo ligado.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Inês Dias


















    "Grief returns like the rain,
                         like the night."

                          Iris Murdoch


Assim que a estação morria,
o mar vinha buscá-la
entre salvas de limos
e restos de outros naufrágios.
Os banheiros desmontavam a praia,
arriando bandeiras friorentas
enquanto eu, rei sem reino
para trocar pelo meu cavalo,
regressava então ao exílio.


À espreita, rancorosos, os dias
úteis, caçadores com a alma
pela trela e o prazer
de atirar para ferir;
atrás de mim o verão,
como água salgada
a lamber uma ferida aberta.


A tua chuva, poeta,
já nada me consegue ensinar:
tornei-me um cego
a quem cortaram as mãos
para não ler mais
o mundo, invariavelmente,
repetidamente, ainda ali.


in TEMPOS VÁRIOS, paralelo w, Lisboa 2014

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Correspondência

(...)
"Aquilo, meu filho, é um país de filhos da puta, que sempre andaram pelo mundo a fazer filhos em putas"
(...)


in Correspondência 1969-1978, Jorge de Sena e Carlo V. Cattaneo , trad. de Jorge Vaz de Carvalho, Ed. Guimarães, 2013.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Alberto Pimenta

(...)
Sei é que eu, cavalheiro do século XX, não me pareço muito com este cabeludo que usava um
pithos não só para repousar e meditar, porque ele tinha as paredes e o fundo cobertos de uma
camada de esperma seco que dava para calafetar um navio. Isto é o que consta: Diógenes era um masturbador compulsivo; uma espécie de socialista radical, porque só na masturbação é que se reúnem na mesma mão capital e trabalho.
(...)


in Cão Celeste nº4, Diógenes, pág.88.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Rui Caeiro

(...)
A Rua das Flores é, pode dizer-se, uma continuação
da Travessa dos Remolares.
Pode, mas não deve, porque nada têm de facto a ver
uma com a outra.
A Rua das Flores é de graves inclinação e apresenta
pergaminhos burgueses, conotações literárias. Para
não falar do vizinho grupo escultórico, ao Largo do
Barão de Quintela, ou do fantasma do camiliano
Vieira de Castro a abafar o rosto da mulher com a
almofada, há a queiroziana Genoveva a atirar-se de
uma janela e a dar tragédia à rua.
A Travessa dos Remolares não tem direito a tragé-
dias. Só a quotidiano reles.


Quotidiano reles mas ainda assim parte integrante
de um mundo e sui generis. Aguardando o seu Ber-
nardo Soares como quem espera o D. Sebastião.
E para que o mito se cumpra - ou nem mito
haveria - ainda não foi ou será desta.
(...)



in TRAVESSA DOS REMOLARES, paralelo w, Lisboa 2013, p.7