sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Poemas com gatos ( V )


                       PORTUGUÊS VULGAR


O meu gato deixa-se ficar
em casa, farejando o prato
e o caixote das areias. Já não vai
de cauda erguida contestar o domínio
dos pedantes de raça, pelos
quintais que restam. O meu gato
é um português vulgar, um tigre
doméstico dos que sabem caçar ratos e
arreganhar dentes a ordens despóticas. Mas
desistiu de tudo, desde os comícios nocturnos
das traseiras até ao soberano desprezo
pela ração enlatada, pelo mercantilismo
veterinário ou pela subserviência dos cães
vizinhos. Já falei deste gato
noutro poema e da sua genealogia
marinheira, embarcada nas antigas
naus. Se o quiserem descobrir, leiam
esse poema, num livro certamente difícil
de encontrar. E quem procura hoje
livros de poemas? Eu ainda procuro,
nos olhos do meu gato, os
dias maiores de Abril.


I.L.

in LOGROS CONSENTIDOS, & etc, Lisboa 2005, pág.38.




                   QUE FAÍSCA FUGIU DO TEU OLHAR *


Nunca consegui despedir-me
dos meus mortos. Porque partíamos
para outras cidades, outras ruas, outros
sítios de despedida. Transporto
comigo esses finais antecipados,
novelos sem ponta, mimeses
sucessivas.

Mas os meus animais
sempre de mim se despediram, desde
o tigre doméstico, envenenado no quintal
por uma velhinha sinistra que
queria preservar as alfaces,
até ao meu último cão, escondido
no último dia, no canto mais escuro
da garagem, um sítio de partidas
que ele conhecia.

Vem dos animais
uma tal inteireza, um até ao fim, até
que a morte nos separe, tão intensamente
farejado, tão comovidamente lambido. O clarim
de um miado ao abrir da porta. O latir
festivo de todas as chegadas. A probidade
do humilde estado de andar
a quatro. A alegria arcaica de trincar, rilhar
o esburgado osso, o looping de garras
fulminantes para suster um voo. Endoidecer
ao cheiro do pescado. Escutar
sons inaudíveis, danado de atenção.

Só os nossos animais nos lançam longos e
verdadeiros olhares de saudade, antes
de partirem, na sua perfeita condição
de seres indivisíveis, para a ventura de
nenhum hades, nenhum céu.


* verso de um poema de Ruy Belo

I.L.
idem pág.43 e 44.


Nota: Tenho vindo a postar aqui, alguns poemas "felinos" que foram publicados em diversos livros meus. Já lá vão 10. Vou fazer um pequeno interregno, mas prometo que voltarei à temática porque  ainda há mais...

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