quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Elegia para um dia inicial


“Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo.”

 SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
 


 

 

Esperavas aquela madrugada do dia inicial, inteiro e limpo. Contigo esperavam milhões de vidas reprimidas, emigrações a salto, vítimas de toda a caterva de leis iníquas, perversamente retorcidas para limitarem consciências e horizontes. Contigo esperavam os colonizados mais antigos do século, os jovens estropiados, os desertores conscientes, os que seriam mobilizados, os  que ainda iriam nascer. Largas estantes de livros censurados, quilómetros de película por projectar nos ecrás, beijos e abraços por dar nas ruas, clamores em uníssino nas praças. Abriram-se, de novo, os sítios de debate, sinistramente fechados e o direito de ser laico, humano e provisório, liberto de todos os pecados originais de ter nascido.

 

Ainda bem, Sophia,  que já não podes assistir a esta lepra que garrotou a nossa nova noite e este ruído de chacais e abutres que invade foruns e parlamentos, os velhos areópagos da nação. Uma nova tirania nos sufoca, com novos súbditos dela a aniquilar o povo. Leio e releio, sei decor o teu poema. Já não creio num outro dia inicial. Mas ainda acredito que virás buscar os momentos que não passaste ao pé do mar e que nos cabe a nós que esse teu e nosso mar de navegações e naufrágios seja de novo o limite líquido de uma nação, onde possamos livres habitar a substância do tempo.

 

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