sexta-feira, 8 de junho de 2012

Carlos Alberto Machado


  O FANTASMA DO CAIS

  Conheci-o pelos meus seis anos, quando a minha mãe pela primeira vez me levou à Horta, ao Hospital, para uma operação às amígdalas. Lá está ele ainda no cais, costas voltadas para a lancha e para as pessoas que nela entram ou saem. Olha para todo o lado e para nenhum - menos para a lancha. Dir-se-ia que alguém o depositou ali, no lado errado, e depois se esqueceu de o retirar ou de o voltar para o sítio certo.
  Faça sol ou chuva, ele lá está, há mais de vinte anos, naquele alheamento de tudo, as pernas levemente afastadas, os braços caídos ao longo do corpo com as palmas das mãos bem voltadas para trás, no rosto uma boca de lábios quase invisíveis onde mora um sorriso entre o idiota e o sarcástico.
  Nessa minha primeira viagem o mar estava agitado e a minha mãe, já na Horta, perguntou-me se tinha gostado. Respondi-lhe que sim mas na verdade nem dei pela viagem, a cabeça todo o tempo ocupada a cismar naquela espécie de fantasma do cais da Madalena. Cismei, digo-o hoje, como se soubesse que em cada viagem de lancha o veria sempre ali, sempre na mesma posição e com o seu enigmático sorriso inalterado.
  Poucos são, contudo, os que reparam nele e na sua estranheza. Talvez a sua quietude e o seu alheamento imperial criem em torno de si uma espécie de escudo que impede que o vejam. Já adulto, atrevi-me uma ou outra vez a interpelá-lo, pelas horas, pelo lume para o cigarro: nada, apenas um inclinar ligeiro da cabeça e o sorriso que se abre quase imperceptivelmente. Mudo e quedo. Esfíngico. É ele o próprio enigma. Para mim é fascinante existir alguém assim, que apenas existe e não quer significar nada - ou que na sua existência neutra nos faz ver com olhos lavados tudo o que nos rodeia, o velho e o novo. Talvez seja isso. O facto de ele existir ali, daquela maneira, é mais forte que a gritaria e os gestos em excesso da turba. Uma ardósia onde cada um de nós pode escrever o que quiser.
  Por isso, é preciso que voltes, velho amigo: sem ti, o cais, as lanchas, as gaivotas, as pessoas, as cargas, tudo, tudo, fica sem sentido, como se não pudessem existir sem ti. Volta, velho amigo, se deste os olhos à morte foi por distracção, e isso remedeia-se.


 in estórias açorianas, Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, 2012, p 25

1 comentário:

samartaime disse...

O escravo Jau está que faz inveja!