segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

A árvore de Natal tardia

Aquele canto do corredor continuava ornamentado com o pinheiro artificial, as bolas douradas, os sininhos mais a cena pastoril do estábulo de há dois mil anos. Merda de Festas, que têm de começar pelos adereços e não por uma vontade de comemorar seja o que for. Não era a  primeira vez que chegava ao Carnaval sem desarmar a tenda dos enfeites natalícios.  Arlindo já tinha pensado, várias vezes, em anos anteriores, porque raio não se podia fazer o Natal de quatro em quatro anos como os Jogos olímpicos ou os anos bissextos. Era um descanso para tanta gente e tornaria o evento desejado e não um cumprimento de rituais penosos, que se têm de transmitir às gerações mais novas para poderem acompanhar o rebanho. É certo que quando os miúdos nasceram e havia um choro de recém-nascido em casa, pelo Natal, vinha à cabeça uma espécie de quebranto e de amolecimento, como quando somos pequenos e alguém nos entoa uma canção para adormecer e esconder o mundo cheio de repressões e aprendizagens estúpidas que nos aguarda no dia seguinte. Assim rememorando, Arlindo voltou à cozinha, tirou uma mini do frigorífico e ligou a televisão para ouvir o telejornal e adormecer na cadeira perante as crises e cataclismos globais.

Inês Lourenço

in  ephemeras

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Bach - Magnificat, Es-dur, BWV 243a (First Version, 1723)


Johann Sebastian Bach (1685~1750) Magnificat, Es-dur, BWV 243a (First Version, 1723) Amsterdam Baroque Orchestra & Choir.   Ton Koopman (conductor)

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Manuel de Freitas

INVENTÁRIO PLEBEU

                     
        para o José Miguel Silva

A verdade, digam lá o que disserem,
é que tivemos muito pouca sorte
com os poetas (?) nossos contemporâneos.

Um nasceu em Galveias e tatua-se
ou alfineta-se para disfarçar um vazio evidente;
outro gosta de andar nu em Braga,
muito depois - e aquém - de qualquer Pacheco.
(Ignoram, ambos, que a única pila maior
do que o mundo era a do João César Monteiro.)

Um terceiro, cujo nome nunca escreverei,
é a mulher moderna da edição
às cegas e da sacanice quotidiana. O quarto
e o quinto (gabo quem os logra distinguir)
arrotam melancolia e não admitem
o mínimo desvio à sacrossanta transfiguração da lírica.

 O sexto - não, não me apetece falar aqui do sexto.

Consola-nos, isso sim, saber que uns se tornaram
entretanto romancistas (pilim,pilim), e que os restantes
hão-de ser, muito em breve, ministros
ou somente pulhas (é, no fundo, a mesma coisa).

Enquanto, de esgoto em esgoto,
Portugal progride a olhos vistos
e é bem capaz de levar, um dia destes,
com outro Nobel nas trombas.


in CÓLOFON, Manuel de Freitas, pág.27, FAHRENHEIT 451, Lisboa 2012.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Fernando Lopes-Graça (17 DEZ 1906 - 1994)

Fernando Lopes-Graça, «Duas canções»

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Manoel de Oliveira (Porto, Cedofeita, 11 de Dezembro de 1908)

1942 - aniki bobó



«Aniki-Bóbó» estreou a 18 de Dezembro de 1942 no cinema Eden, Lisboa. Intérpretes: Nascimento Fernandes - Lojista; Fernanda Matos - Teresinha; Horácio Silva - Carlitos; António Santos - Eduardinho; António Pereira - Batatinhas; Vital dos Santos - Professor; António Morais Soares - Pistarim; Feliciano David - Pompeu; Realização - Manoel de Oliveira.

2012 – O Gebo e a Sombra (Trailer)

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Fernando Pessoa (Lisboa, 13 de Junho de 1888 — Lisboa, 30 de novembro de 1935


Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é,
Sentir, sinta quem lê!
  Fernando Pessoa
por Almada Negreiros
 

.
 
 
 
 
 
Não só quem nos odeia ou nos inveja
Nos limita e oprime; quem nos ama
Não menos nos limita.
Que os deuses me concedam que, despido
 De afetos, tenha a fria liberdade
Dos píncaros sem nada.
Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada
É livre; quem não tem, e não deseja,

 Homem, é igual aos deuses.
       Ricardo Reis
 

   

terça-feira, 27 de novembro de 2012

terça-feira, 13 de novembro de 2012

EPHEMERAS

COISAS QUE SE FAZEM DE PÉ

Gervásio resolveu pensar nas coisas que se podiam fazer de pé, sentado ou deitado. De pé, podia-se fazer quase tudo; até dormir, pois tinha visto umas litografias antigas, onde, num albergue de mendicidade, havia uma grossa corda suspensa de um lado a outro, para os mendigos passarem a noite, apoiando os sovacos. Afinal, quase tudo se podia fazer de pé, desde uma honesta mijadela até uma rapidinha ocasional. Também já vira carteiros, polícias e cobradores a escreverem de pé, na rua. E até já frequentara umas aulas super-lotadas, em que os alunos tomavam apontamentos de pé. Também assim se exercia a maioria dos ofícios e trabalhos agrícolas, se tocavam vários instrumentos, se dançava. Mas, pensando melhor, quando um gajo tem azares, até se faz tudo de outras maneiras. Deitado. Sentado. Recostado. E fazem-se coisas sonhadas, imaginadas. Sonhar e imaginar, dizem alguns, são acções. Mexem. Coisa batida, bahhh! Mas, dá jeito acreditar nisso, ao menos, de vez em quando… Assim pensava, ao colo da companheira. A cadeira ortopédica.

(pág.28)

PRECIPÍCIO

Quando o solista se precipita nas teclas como um ser arremessado aos abismos, está envolto na circunstância incerta a que se chama virtuosismo. Esta permite-lhe pôr a técnica laboriosamente entretecida no corpo desde a infância, como suporte da densidade das emoções com que nos vai contagiando. Quando num prestíssimo ou numa coda rutilante de velocidade e percussão melódica ou pós-melódica os meus olhos se fixam na figura frágil do intérprete na sua miraculosa performance, experimento sempre, por osmose, aquele frisson do trapezista antes do triplo salto ou do esquiador em descendente trilho. As palmas e os bravos são a catarse necessária e desejável. Numa sala de concertos pode assistir-se ao que não se assiste na vida. Finais felizes.

(pág.32)

Ed. Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, Outubro 2012

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Balada da Bola de Berlim

Que bem sabiam
as bolas de Berlim
das antigas pastelarias de bairro
no regresso a pé das aulas, saboreadas
ao balcão sem lavar as mãos. Nesse
tempo não havia meninos obesos.
Não sei se era de termos lombrigas
ou de andarmos a pé ou
jogarmos ao mata no recreio ou
porque ser criança ainda era
um estado de obediência a tudo
que medisse mais que nós, fosse
irmão mais velho, catequista ou
tio analfabeto.


Hoje visita-nos uma bola de Berlim chamada
ângela,
que nos traz o amargor da sujeição e da
obediência. Somos de novo crianças
colonizadas pelos grandes ou
seja os mais crescidos em estratégia usurária
em território, em haveres do sub-solo. O servo
que a nossa indigência mental
erigiu em primeiro-ministro mostra os canhões prussianos
à poderosa bola de Berlim
que olha com ares imperialistas
a nossa costa atlântica.


Só te perdoo Alemanha
por seres o país de
Goethe, Beethoven, Nietzsche, Rilke e de tantos
outros génios
que certamente desprezariam esta tua chanceler.


Inês Lourenço

(12:nov:2012)

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Duetto buffo di due gatti (Rossini)

 
Montserrat Caballé e Concha Velasco

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

A.M. Pires Cabral

CÃES QUE BRINCAM

I

Dois cães brincam na relva.

Disputam entre si, como se fosse
um apetecido despojo de batalha,
um trapo que um deles descobriu algures.

Um trapo que a seu tempo foi julgado inútil
e jogado fora - mas que, como se vê,
tem afinal enorme utilidade.


II

Os cães são ainda muito jovens
e pouco experientes. Fazem da posse
do trapo velho uma questão de honra,
e não sabem
que não é realmente com um trapo
mas sim com a vida-ela-mesma
que estão a brincar, quando se roubam
com ardor o trapo e correm estouvados
com ele nos dentes, embatendo nas coisas.

Ou será que acham que
vida e trapo são uma coisa só?


III


Há nos cães que brincam,
que arruaçam e arremetem
e rosnam e sacodem entre os dentes
um trapo que pelos vistos não é
um trapo simplesmente -

há neles um equívoco que convém desfazer.

Eles não brincam com um trapo.
Nem tão-pouco com a vida,
como acima se disse precipitadamente.
Visto tudo a frio, nem sequer
se pode dizer que brinquem.

A vida, sim, essa é que brinca neles
até se cansar deles e os pôr de lado.


in Cobra-D'água, Livros Cotovia, Lisboa 2011

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Anna Netrebko & Daniel Barenboim


Romances Russes  (II - Rimski-Korsakov)
Berlin, 29 de março de 2010



Nicolai Rimski-Korsakov:

.Redeyet oblakov letuchaya gryada op. 42 Nr. 3
.Nimfa op. 56 Nr. 1
.Son v letnyuyu noch op. 56 Nr. 2

 Anna Netrebko (soprano)

Daniel Barenboim (piano)

Berlim, 29 de março de 2010

 


sábado, 20 de outubro de 2012

Manuel António Pina (1943 - 2012)




ESPLANADA


 Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,

 agora lês saramago & coisas assim
eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.

 O café agora é um banco, tu professora do liceu:
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos de andar como dantes,
chamando do fundo do meu coração.

  Manuel António Pina


Cecília Bartoli, casta diva

terça-feira, 16 de outubro de 2012

domingo, 7 de outubro de 2012

Leonard Cohen


Aleluia (Versão original de estudio)



Chelsea Hotel

Take This Waltz

(sobre poema de Garcia Lorca)

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Princípio fundamental da Política

"O que a todos diz respeito, por todos deve ser decidido" (aprovado nas Cortes de Coimbra de 1385, a nossa primeira Constituição escrita).

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Acordai!


Música: Fernando Lopes Graça

Poema: José Gomes Ferreira

Interpretação: Coro de Câmara Lisboa Cantat

terça-feira, 18 de setembro de 2012

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Elegia para um dia inicial


“Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo.”

 SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
 


 

 

Esperavas aquela madrugada do dia inicial, inteiro e limpo. Contigo esperavam milhões de vidas reprimidas, emigrações a salto, vítimas de toda a caterva de leis iníquas, perversamente retorcidas para limitarem consciências e horizontes. Contigo esperavam os colonizados mais antigos do século, os jovens estropiados, os desertores conscientes, os que seriam mobilizados, os  que ainda iriam nascer. Largas estantes de livros censurados, quilómetros de película por projectar nos ecrás, beijos e abraços por dar nas ruas, clamores em uníssino nas praças. Abriram-se, de novo, os sítios de debate, sinistramente fechados e o direito de ser laico, humano e provisório, liberto de todos os pecados originais de ter nascido.

 

Ainda bem, Sophia,  que já não podes assistir a esta lepra que garrotou a nossa nova noite e este ruído de chacais e abutres que invade foruns e parlamentos, os velhos areópagos da nação. Uma nova tirania nos sufoca, com novos súbditos dela a aniquilar o povo. Leio e releio, sei decor o teu poema. Já não creio num outro dia inicial. Mas ainda acredito que virás buscar os momentos que não passaste ao pé do mar e que nos cabe a nós que esse teu e nosso mar de navegações e naufrágios seja de novo o limite líquido de uma nação, onde possamos livres habitar a substância do tempo.

 

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

JEAN-CLAUDE RISSET / Sofia Lourenço, piano

Duos pour une pianiste


(8 Sketches+ 1 World Premiere)   - Part 2



NOTA:

Eight sketches: duet for one pianist This is probably the first piano "duet" for a single pianist: in addition to the pianist's part, a second part is played on the same piano - an acoustic piano, with keys, strings and hammers - by a computer which follows the pianist's performance. This requires a special piano - here a Yamaha Disklavier - equipped with MIDI input and output. On this piano, each key can be played from the keyboard, but it can also be activated by electrical signals: these signals trigger motors which actually depress or release the keys. Each key also sends out information as to when and how loud it is played. The information to and from the piano is in the MIDI format, used for synthesizers. A Macintosh computer receives this information and sends back the appropriate signals to trigger the piano playing: the programming determines in what way the computer part depends upon what the pianist plays. In these eight sketches, I have tried to explore and demonstrate different kinds of live interaction between the pianist and the computer.

1. Double.
2. Mirrors.
3. Extensions.
4. Fractals.
5. Stretch.
6. Resonances.
7. Up Down.
8. Metronomes. This "duet for one pianist" was realized in 1989 as I was was composer in residence in the Music and Cognition Group, Media Laboratory; M.I.T., thanks to a grant of the Massachusetts Council of the Arts. It was implemented with the real-time program MAX written by Miller Puckette at M.I.T. and at IRCAM. I acknowledge the highly dedicated and competent help of Scott Van Duyne.

The sketches, recorded by Jean-Claude Risset at MIT, appear on CD "Electro-Acoustic Music III", Neuma 450-87 (with works by Saariaho, Karpen, Nelson & Fuller). Jean-Claude RISSET

WORLD PREMIERE_ REFLECTIONS (9th Sketch)
ded. to Sofia Lourenço

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Manuel de Freitas - JUKEBOX 3


PHILIPPE HERREWEGHE, 2010

Chovia muito, mas não serei eu a afirmar
que as últimas notas (Lux aeterna)
faziam da própria morte uma certeza branda.

Até porque a dor impediu um amigo meu
de sair esta noite, até porque sabemos todos que
o amor não é, infelizmente, a única doença incurável.

Nisso, pelo menos, concordamos os três com Mozart (e com Leonard Cohen). Quase nem parecemos tristes,
saltando de poça em poça, esperando como única estrela

a luz verde de um táxi qualquer em que possamos,
de mãos dadas, esquecer os pecados deste mundo.

Teatro de Vila Real Edição, 2012.

domingo, 5 de agosto de 2012

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

O Território do claro-escuro

(Colhido aqui: http://www.nocentrodoarco.blogspot.pt/) Acaba de ser publicada no México em Junho de 2012, pelas Ediciones Libera, a antologia de poesia portuguesa contemporânea, "Cortei a laranja em duas", organizada e traduzida por Fernando Reyes, professor na UNAM - Universidade Nacional Autónoma do México e que, com bastante satisfação, tenho o prazer de integrar . A antologia inclui poemas de onze autores portugueses (Maria do Rosário Pedreira, Ruy Ventura, João Rasteiro, Fernando Aguiar, Inês Lourenço, Aurelino Costa, Pedro Ribeiro, Alexandre Nave, Filipa Leal, Américo Teixeira e José Rui Teixeira). O prefácio é de Jesús Gómez Morán. Neste, afirma o autor: (…) “a cultura portuguesa caracteriza-se por ser o oposto da brasileira. Se, grosso modo, o temperamento polícromo e alegre é claramente brasileiro, o lusitano tem como qualidades intrínsecas o claro-escuro e a melancolia. Penso, por exemplo, na poesia de Pessoa, cuja figura enorme seria capaz de eclipsar qualquer nome: poeta com a altura de Eliot e de Pound na língua inglesa e de Octavio Paz e Neruda em espanhol, o seu impacto (juntamente com o de Mário de Sá-Carneiro) é tão evidente que a sua sombra caiu praticamente sobre todos os autores portugueses dos períodos posteriores, a tal ponto que explorar o seu contributo lírico se transformou num repto difícil mas iniludível. (…) Quando se pensa nas conexões culturais existentes entre Portugal e México, é possível aceitar que a poesia lusa foi reinventada em 1888, ano do nascimento de Fernando Pessoa. Além disso, esse temperamento taciturno e saudoso parece gémeo do meio-tom, dessa nota crepuscular que caracteriza, por sua vez, a poesia Mexicana, pela voz do seu autor mais representativo nesse período, Ramón López Velarde. Logo, o que se aplica a um poeta pode ser válido para o outro, e o nosso conhecimento das letras e da cultura portuguesa, além desse temperamento, não manifestou em todo este tempo um eixo ou um acontecimento particular que as tenha vinculado. (…) Estas ligações não passariam muito tempo despercebidas e Pessoa haveria de ser analisado, principalmente por Octavio Paz, e traduzido profusamente por Francisco Cervantes, a quem devemos, além disso, a publicação póstuma da antologia Cara Lusitana, editada pelo Instituto de Cultura Queretano (2010), cuja lista se compõe de nomes posteriores a Pessoa e a Sá-Carneiro: Adolfo Casais Monteiro, Raul de Carvalho, Luiza Neto Jorge, Manuel Gusmão, Miguel Torga, Fiama Hasse Paes Brandão, Vitorino Nemésio, Eugénio de Andrade, Alberto de Lacerda, António Osório, Fernando Guimarães e outros. Essa abordagem a esta etapa da lírica portuguesa teve, contudo, pelo menos mais duas antologias prévias. Uma foi preparada por Fernando Pinto do Amaral, Antología de la poesía portuguesa contemporânea, publicada pela UNAM (1997), e a outra foi dada a estampa pela editora madrilena “Hiperión”, Portugal: la mirada cercana (2001). Em qualquer delas, o rol de poetas incluídos anda muito próximo da supracitada Cara Lusitana. Apesar disto, já se notava a necessidade de uma incursão pelas vozes lusitanas mais recentes, lacuna que a actual antologia preparada e traduzida por Fernando Reyes vem colmatar. O leitor terá oportunidade de tirar as suas próprias conclusões, mas quanto a mim a característica mais relevante que posso destacar desta nova empresa compiladora é a tensão estabelecida entre tradição e inovação nos autores selecionados. Nota-se, desde logo, a aparição do temperamento taciturno antes mencionado, a saudade nascida ante a contemplação do mar (com clara índole sebastianista), o espirito órfico herdado de Fernando Pessoa e da sua geração, ao lado de continuas referências intertextuais e das definições da função que o poeta deve assumir, como nestes versos de Inês Lourenço: “habitar um planeta / de versos suicidas / é o primeiro ofício do poeta”. Em união com estes traços, verifica-se uma inquietude experimental que dinamiza a expressão lírica, tanto em poemas dialogados de forma tal que se aproximam bastante da heteronímia (como é o caso de Ruy Ventura), quanto noutros com versos tao breves que parecem enformar linhas verticais (como sucede com Fernando Aguiar). Apesar disso, há poetas como João Rasteiro em cuja obra se unificam a tendência experimental, quando publica poemas em prosa (com versos praticamente justapostos), e a tendência tradicional, quando escreve em tercetos medidos. Ao analisar o temperamento do romantismo, Octavio Paz traçou dois enfoques primordiais: a analogia e a ironia. E é este segundo elemento o que emprega Fernando Aguiar para rasgar o véu melancólico da tradição poética lusitana. Isto acontece quando descreve algo aplicável tanto na operação de uma torre aéreo-portuária quanto na composição de um texto literário: “para quem julga que estou a / exagerar, não diga apenas que / não há dúvida que está realme / nte mesmo cada vez mais um / ito difícil. nem que está d / ificílimo. está dificilíssimo” E certamente, “ não há dúvida”. Por mais difícil que pareça, neste caso, estender uma ponte sobre este território poético marcado pelos contrastes de um claro-escuro, existem dois pontos salientes: estamos diminuindo a distância que nos afastava da poesia portuguesa contemporânea e, paulatinamente, essa tradição vai mostrando evidentes signos de regeneração (que, ao fim de contas, é um postulado de ascendência órfica) e frescura lírica. Jesús Gómez Morán (Tradução: Ruy Ventura)

terça-feira, 31 de julho de 2012

Agosto amanhã?

De hoje a um ano, como estará a Europa, a união a 27, o Euro, este país Portugal e a vida dos onze milhões que habitam neste rectângulo? Como estará o ensino, a saúde pública, as derrapagens salariais, o desemprego, o previsivel aumento até ao delírio da carga fiscal que reduz a classe média à circusntância de quase penuria? Quantas mais árvores e casas vão ficar carbonizadas, sem se encarar de frente o facto de que pirómanos analfabetos ou débeis mentais devem ter mandantes interessados numa provável "indústria de fogos"? E tantas interrogações nos ocorrem em tropel neste dealbar de Agosto. Entretanto, os portugueses que elegeram este governo estão a ter a paga merecida, pela credulidade com que se eludiram acerca de jótinhas, seus patrocinadores e outras personagens que povoam actualmente a cena política. Verificado já o logro, que foi culpar o ex-primeiro ministro de todos os males da nação e arredores. Porém, aqueles que estavam cientes da cena internacional e da rapina usurária das instâncias financeiras, não se deixaram eludir e não votaram neles. Este, não será um dos pontos fracos da tão glorificada Democracia? Haver uma maioria de interesses económicos matreiros somada à pouca instrução e muita ignorância que instala no governo de um país uns servis mandatários às ordens da usura financeira dos intitulados mercados? "Ir para além da troika", aumentando os iva(s) à restauração, cortando subsídios, comprometendo gravemente o consumo e os pequenos empresários e por via disso diminuir a receita fiscal é governar pessimamente um país em crise económica. E convém não esquecer as histórias mal contadas das público-privadas, de BPN, privatizações escuras, submarinos e outros sorvedouros. Não é preciso ser economista para perceber isto. O resto, o grande resto prevê-se triste: o ensino superior, as universidades, a investigação, etc, ou seja, tudo que faz a diferença entre um país de mentes esclarecidas ou de meros empregados de turismo da Europa.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Corté la naranja en dos







Esta antologia de poesia portuguesa contemporânea, "Cortei a laranja em duas", acaba de ser publicada no México em Junho de 2012, pelas Ediciones Libera, organizada e traduzida por Fernando Reyes. Inclui poemas de onze autores portugueses (Maria do Rosário Pedreira, Ruy Ventura, João Rasteiro, Fernando Aguiar, Inês Lourenço, Aurelino Costa, Pedro Ribeiro, Alexandre Nave, Filipa Leal, Américo Teixeira e José Rui Teixeira). O prefácio é de Jesús Gómez Morán.


Versos Suicidas


Os verdadeiros versos suicidas, não
induzem a um tempo desistente
ou à indiferença ou à insuportável náusea

de existir, mas são deveras aqueles
que apesar de reescritos várias vezes,
desapareceram
atirados para qualquer receptor de 
detritos,
que agora se diz: pasta de reciclagem.

Habitar um planeta
de versos suicidas
é o primeiro ofício do poeta.

Inês Lourenço página 23 ( inédito).


quarta-feira, 25 de julho de 2012

José Ángel Cilleruelo

  A CASA


 Verão livros amontoados e sem ordem.
 Muito lidos, os romances de Joaquín Belda
 Assustarão a alguém. Não vão achar diário
 Nem sublimes escritos com intimidades.
 Não há quadros no quarto. Não há outra ilusão
 Além de uma esferográfica que ainda escreva,
 Um envelope, um selo... E quando procurarem cartas
 Apenas verão velhos recortes de jornal.
 Os cadernos que me ofereceram em Málaga.
 Péssimas fotografias de família. Onze
 Versos casuais de um soneto inexistente.
 E um feixe de razões para o esquecimento.
 Quando abandonar a casa o último dia
 Pouca vida mais nela encontrarão.


 trad. de Joaquim Manuel Magalhães.
 in Hífen 9 - Poesia Hispânica, Porto, Setembro de 1995.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

El balcon en frente - J. A. Cilleruelo

http://elbalconenfrente.blogspot.com.es/2012/06/la-poetica-oracular-de-ines-lourenco.html

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Joana Vasconcelos

Na sequência do post anterior e para evidenciar o lado oposto do chavascal lusitano, aqui se evoca e mostra a obra desta artista.

sábado, 14 de julho de 2012

Cura musical para sair da latrina tuga

Schubert - Impromptus Op. 90, N. 4, D 899
Maria João Pires

terça-feira, 10 de julho de 2012

Arte da Revelação

Câmara Escura – uma antologia


Autora: Inês Lourenço

Antologiador: Manuel de Freitas
Editora: Língua Morta

N.º de páginas: 44
ISBN: 978-989-97718-0-2
Ano de publicação: 2012

Antologiar um poeta é sempre um trabalho de reenquadramento. Ao fazer uma escolha, ao reduzir um corpus muitas vezes extenso a um núcleo duro de poemas essenciais, o antologiador cria uma nova visão da obra, que tanto pode reflectir o arco completo da sua diversidade temática, ou estilística, como incidir apenas em certas linhas-mestras, ignorando outras. Em Câmara Escura, a antologia que Manuel de Freitas fez do trabalho de Inês Lourenço, estamos perante um caso extremo de depuração. Dos nove livros publicados pela autora portuense em três décadas, de Cicatriz 100% (1980) a Coisas que Nunca (2010), foram seleccionados apenas 30 poemas. É como se Freitas equivalesse cada livro de Inês Lourenço a um rolo fotográfico do qual só retira três ou quatro imagens, isolando-as do contexto original, inserindo-as numa outra narrativa poética e revelando-as à luz vermelha do seu sentido crítico, como aliás o título da antologia sugere.

Estes são poemas de uma notória contenção formal, por onde passam vinhetas urbanas (da «tristeza inerme dos telhados» às transformações sociais intuídas através da roupa posta a secar), exercícios de ironia (o requiem pela criadora da boneca Barbie), gestos soltos (um cigarro que se acende na praia, apesar do vento) e pequenas observações quotidianas (os estalidos da madeira em casas velhas; a irresistível inutilidade ronronante dos gatos). Num tempo em que as «musas / ficaram desempregadas», Inês Lourenço dá importância à «carpintaria dos versos» e usa a «faca incandescente» que separa «o corpo das palavras / da substância do mundo», mas desconfia da beleza enquanto horizonte do poeta e do lirismo apaziguador, com a sua «indústria de incensos». Para esta autora, o poema deve nascer para a mudez, mesmo que respire por sons. Deve interrogar o desencanto e assistir à «certa dissolução / das coisas». Ou, como se diz numa das várias artes poéticas incluídas na antologia, mostrar «do rosto não o facto mas o feixe / do timbre não o fundo mas a fenda / da venda não a fresta / mais que o laço».

Avaliação: 8/10
[Texto publicado no n.º 114 da revista Ler]


http://bibliotecariodebabel.blogspot.com

Licenciatura

Miguel Relvas numa das salas da Universidade Lusófona, pede licença para entrar. Responde  o professor: está licenciado.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Regras culturais tradicionais no Afeganistão

Lal Bibi, 18 anos de idade foi sequestrada, estuprada, torturada e acorrentada a uma parede durante cinco dias por uma gangue de poderosos policiais afegãos. Mas ela está se defendendo e ousando fazer algo que as mulheres no Afeganistão são proibidas de fazer: ela está reagindo. E juntos podemos ajudar Lal Bibi e todas as mulheres afegãs a conseguir justiça.

De acordo com as regras culturais tradicionais, Lal Bibi foi "desonrada" porque foi estuprada. Agora terá que se suicidar, como ela mesma disse publicamente, a menos que seus violadores sejam levados à justiça para restaurar sua honra e dignidade. O sistema de justiça do Afeganistão frequentemente deixa de processar esses casos. Até agora os suspeitos principais no caso Lal Bibi não foram julgados, provavelmente na esperança de que a atenção internacional se disperse. Cada dia que se passa sem que os policiais sejam presos, Lal Bibi fica mais perto de ter que cometer o suicídio - mas ainda há esperança.

Este fim de semana, os EUA, Reino Unido, Japão e outros grandes doadores devem doar 4 bilhões de dólares para o Afeganistão - dinheiro que vai pagar as próprias forças policiais responsáveis ​​pelo estupro Lal Bibi. Mas um protesto internacional pode alertar os países doadores, condicionando sua ajuda à medidas que combatam o estupro e protejam as mulheres. Nós não temos muito tempo - clique no link abaixo para mudar aquilo que poderá salvar a vida de Lal Bibi. A nossa petição será entregue diretamente na conferência de doadores em Tóquio:

https://secure.avaaz.org/po/justice_for_lal_bibi_c/?bTkcicb&v=15783

Os costumes locais em algumas partes do Afeganistão dizem que as mulheres desonradas por um estupro devem se matar para restaurar a honra da sua família para as gerações futuras. Surpreendentemente, com muita coragem, Lal Bibi e sua família estão tentando salvar sua vida, insistindo no julgamento de seus torturadores e tentando mostrar à sociedade que a culpa é dos autores deste crime e não dela.

A força policial afegã, responsável pelo estupro depende do financiamento externo que será entregue neste fim de semana, quando todos os principais doadores do Afeganistão se reunirem em Tóquio. Os países doadores podem e devem exigir que os fundos não sejam gastos com uma polícia que age sob uma impunidade terrível, quando deveriam trabalhar para proteger as mulheres, e não atacá-las!

Há centenas de mulheres e meninas em todo o Afeganistão, que estão sujeitas à "justiça tradicional" como Lal Bibi. Milhares de pessoas estão acompanhando atentamente para ver como o governo afegão e o mundo responderá à menina que está lutando corajosamente e se recusa a morrer silenciosamente. Vamos apoiá-la - assine a petição abaixo e conte para todos:

https://secure.avaaz.org/po/justice_for_lal_bibi_c/?bTkcicb&v=15783

A guerra global contra as mulheres é implacável. Mas várias vezes a nossa comunidade se une para vencer. Nós ajudamos a impedir o apedrejamento ilegal de Sakineh Ashtiani no Irã, e lutamos pela justiça para vítimas de violações na Líbia, Marrocos e Honduras. Vamos mostrar o poder global da nossa comunidade para ajudar a ganhar a causa de Lal Bibi e milhões de mulheres no Afeganistão.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Sofia Lourenço



Na passada sexta feira dia 29 de Junho, em Guimarães, a pianista Sofia Lourenço com a Orquestra do Norte, sob a regência do maestro Francesco La Vecchia, interpretou o Concerto para Piano e Orquestra N.º9 "Jeunehomme" em Mi bemol Maior,K.271 de Wolfgang A. Mozart.

sábado, 23 de junho de 2012

Noite de S. João




















O verde do manjerico

Mais o teu modo de olhar

São o naufrágio onde fico

À espera de me afogar.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Inadmissível ou ilícito?

A hipocrisia semântica que fede nas recentes conclusões da ERC, embora com dois conselheiros votando vencidos no denominado caso Relvas, é lamentável e repelente. Como é que alguma coisa pode não ser admissível para uma comunidade democrática, não sendo ilícita? Quererá dizer que a legislação admite comportamentos inadmissíveis, quando o agente desse comportamento é pela sua importância política um inimputável?

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Feliz Aniversário! Com um Abraço de Parabéns, para a Manuela

 


Para um Amigo Tenho Sempre 
 Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.

António Ramos Rosa, in "Viagem Através de uma Nebulosa"

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Quadra Popular

Já lá vai Abril e Maio,
Já lá vão estes dois meses,
Já  lá vai a liberdade
Com que te eu  amava às vezes  .

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Miguel - Manso

     

     1

  Abres o alçapão, pões o braço lá dentro. O que retiras de lá não é o que retiras de lá, mas ocupa um lugar. É um lugar o que retiras do alçapão. Um lugar a menos


      3

   O livro é uma cegueira veloz no sentido da lentidão. Nada, tudo, outra vez nada. Depende da mão que abandona mas primeiro bane o que bane a estranheza. O livro não se define com desembaraço, é de tear complicado. O dedo que aponta o livro não é o livro. O que o autor e o leitor sim aprendem com o livro: a evidência da escuridão, o indistinto da nitidez



      28

   No jornal: mulher esteve nove anos morta em casa. Passou quase uma década entre o momento íntimo dessa morte e o maior ou menor espavento civil (e/ou religioso) que a autorizou. A morte, que acontece sempre aos outros, precisa, idealmente, da exibição do seu resíduo: o corpo consumado. Ou então de um vestígio, notícia, um boato que seja. Se ninguém acolheu a morte dessa mulher, então ela só morreu (tornou a existir) de facto, no dia em que a encontraram no chão do seu apartamento. Mais do que uma utopia, ou um hiato (uma hiatopia) o lugar e o tempo onde e em que ela desexistiu (apurados e admitidos postumamente) têm a dimensão do mito. E eis que o vocábulo apartamento atingiu ali a sua literalidade. Mas de nada, para nada, por nada e em tempo nenhum


       32

   Alinhas letra a letra o letreiro da burla. O textículo em que trabalhas não obedece mais à profusa lei do pôr. E apenas sobrepões por camadas um espanto já aborrecido e sem lugar, de onde retiraste o gesto de ter posto mas nunca o gesto de ter gesto. Nunca o vento de resumir ou o rasto de ampliar


       52

   Poesia em estado bravio há. É porém o poema, esse organismo mindinho que pertence por degeneração ao corrupto agregado literário, que terá de encontrar a voltagem exacta que permita  canalizar a pequena parte - a possível - de todo o potentado. O problema dos poetas começa por ser uma dificuldade de artesanato, de técnica, de oficina. E os cantos mais belos estão ainda à espera de ser cantados (WW)



       in Um Lugar a Menos, Os Carimbos de Gent, Lisboa 2012, págs. 11; 13; 44; 50 e 76.




     

  


 

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Bernardo Soares



"Ah, quem me salvará de existir? Não é a morte que quero nem a vida: é aquela outra coisa que brilha no fundo da ânsia como um diamante possível numa cova a que se não pode descer (...)"

segunda-feira, 11 de junho de 2012

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Carlos Alberto Machado


  O FANTASMA DO CAIS

  Conheci-o pelos meus seis anos, quando a minha mãe pela primeira vez me levou à Horta, ao Hospital, para uma operação às amígdalas. Lá está ele ainda no cais, costas voltadas para a lancha e para as pessoas que nela entram ou saem. Olha para todo o lado e para nenhum - menos para a lancha. Dir-se-ia que alguém o depositou ali, no lado errado, e depois se esqueceu de o retirar ou de o voltar para o sítio certo.
  Faça sol ou chuva, ele lá está, há mais de vinte anos, naquele alheamento de tudo, as pernas levemente afastadas, os braços caídos ao longo do corpo com as palmas das mãos bem voltadas para trás, no rosto uma boca de lábios quase invisíveis onde mora um sorriso entre o idiota e o sarcástico.
  Nessa minha primeira viagem o mar estava agitado e a minha mãe, já na Horta, perguntou-me se tinha gostado. Respondi-lhe que sim mas na verdade nem dei pela viagem, a cabeça todo o tempo ocupada a cismar naquela espécie de fantasma do cais da Madalena. Cismei, digo-o hoje, como se soubesse que em cada viagem de lancha o veria sempre ali, sempre na mesma posição e com o seu enigmático sorriso inalterado.
  Poucos são, contudo, os que reparam nele e na sua estranheza. Talvez a sua quietude e o seu alheamento imperial criem em torno de si uma espécie de escudo que impede que o vejam. Já adulto, atrevi-me uma ou outra vez a interpelá-lo, pelas horas, pelo lume para o cigarro: nada, apenas um inclinar ligeiro da cabeça e o sorriso que se abre quase imperceptivelmente. Mudo e quedo. Esfíngico. É ele o próprio enigma. Para mim é fascinante existir alguém assim, que apenas existe e não quer significar nada - ou que na sua existência neutra nos faz ver com olhos lavados tudo o que nos rodeia, o velho e o novo. Talvez seja isso. O facto de ele existir ali, daquela maneira, é mais forte que a gritaria e os gestos em excesso da turba. Uma ardósia onde cada um de nós pode escrever o que quiser.
  Por isso, é preciso que voltes, velho amigo: sem ti, o cais, as lanchas, as gaivotas, as pessoas, as cargas, tudo, tudo, fica sem sentido, como se não pudessem existir sem ti. Volta, velho amigo, se deste os olhos à morte foi por distracção, e isso remedeia-se.


 in estórias açorianas, Companhia das Ilhas, Lajes do Pico, 2012, p 25

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Pena de morte por lapidação

Manifestante francesa protesta contra o apedrejamento de mulheres até à morte.


Caríssimas/os,
Mais uma jovem mulher sudanesa, de 20 anos, foi condenada à morte por apedrejamento no passado dia 13 de Maio, pelo tribunal criminal de Ombada, no Sudão, pelo crime de adultério.
O julgamento de Intisar Sharif Abdallah foi feito sem a intervenção de um/a advogado/a, nem de intérprete, apesar de ela não ter um bom conhecimento de árabe, por não ser a sua língua natal. Foi condenada com base nas declarações que prestou após ter sido espancada por um seu irmão.
Está detida juntamente com o seu filho mais novo, de quatro meses de idade. Os seus dois outros filhos estão à guarda da sua família.
Queria pedir-vos para se juntarem à campanha da Amnistia Internacional para exigir a revogação desta sentença de morte, enviando ao Presidente da República do Sudão, Omar Hassan Ahmad al-Bashir - :info@sudan.gov.sd - uma carta idêntica à que junto em anexo.
E, também, que divulguem esta mensagem e a carta junto de todos os vossos contactos.
Para mais informações sobre este caso podem consultar o site:  http://deathpenaltynews.blogspot.pt/ /2012/05/urgent-appeal-for-woman-sentenced-to.html
Obrigada.




                                                   




segunda-feira, 4 de junho de 2012

Sheryl St. Germain

    Portadores de Archotes
 

 De olhos injectados, suando whiskey, eles eram os verdadeiros deuses da
 noite, e eu gostava de vê-los transportando as preciosas insígnias do fogo,

 Eu gostava de vê-los, cambaleantes e trôpegos, mambando, arrastando os
 pés, fazendo zig-zags pela rua, exibindo o fogo,

 como palavras luminosas ou feridas, chispas de diamante caindo no chão
 como suor, archote e portador tão unidos que os próprios portadores
 pareciam de fogo.

 Penso que os amava porque mesmo quando criança eu sentia que os
 poemas que tentava escrever na escuridão do meu quarto eram como isto,
                     ébrias epifanias de luz
          momentos gaguejantes entre os andores do Sonho e do Pesadelo,

 creio que os amava porque
 eu queria que este fosse o ofício de poeta:
 carregar a noite em chamas,
 levantando alto os nossos próprios eus
 tropeçantes,
 espantados,
 dançando na rua.


      trad. de Maria Andresen e Alexis Levitin
    (  nº28 Abril de 2011 - Relâmpago, p. 199 )


Nota: Nascida, em New Orleans em 1954 tem diversos livros de poesia publicados, sendo os três últimos:
Let It Be a Dark Roux: New and Selected Poems, poetry
(Pittsburgh: Autumn House Press, 2007)
Swamp Songs: The Making of an Unruly Woman, essays
(Salt Lake City: University of Utah Press, 2003)
The Journals of Scheherazade, poetry (Denton: University
of North Texas Press, 1996)
    
     

terça-feira, 29 de maio de 2012

Cecilia Bartoli

   Nota: Em celebração dos povos latinos, (de que infelizmente, alguns políticos nos querem afastar pelo Acordo Ortográfico) e que estão a ser tão maltratados pelos países endinheirados da Europa. Nem só fabricar Mercedes, Ferraris, armas de guerra e electro-domésticos define o ser humano.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Florbela, Adília & Pessoa


 
 
 
Nota: Neste poema publicado em 2005, fiz comparecer Pessoa, Florbela e Adília Lopes. Esta última no seu conhecido livro "Florbela Espanca
espanca", glosa um soneto da popular autora, onde esta afirma: "Eu quero amar, amar perdidamente", contrapondo um simétrico "Eu quero foder/foder achadamente". A expressão Possessio maris que evoquei para título deste poema é uma epígrafe da "Mensagem" de Fernando Pessoa e significa, em latim, "possesão dos mares". Sabe-se que a "possessão" implica também ser possuído. Pessoa descreve isso muito bem, no poema "Mar Português" do livro citado: "Ó mar salgado, quanto do teu sal/são lágrimas de Portugal!". Esta possessão pode igualmente ser convocada pela paixão amorosa realizada ou não. Lembrei-me de isto hoje, a propósito de alguns comentários no facebook, muito enjoados com a poesia e a figura de uma das nossas mais
conhecidas autoras: Florbela Espanca (1894-1930).


POSSESSIO MARIS


            para Adília Lopes

É tão banal no poema
saber dourar a cópula. Como, ao
amar, resistir à boa humilhação de
babélica e virtuosamente
foder e ser fodido. Assim

tão cruamente seja dita
a bíblica prática do conhecimento
dos corpos livre de intertextos e
arredada da culpa e das pestes
racionais.

As almas sensíveis, minha amiga,
não acham sobre-humano nem
muito estético esse acto de achada
eficácia. Desdenham e enjoam
o látego terminal do gozo. Eternos
nautas em seco, aportam a doutos

ensaios e outras posições
elípticas, esquecidos do genitivo
de posse e das declinações trágico-marítimas
onde nunca ninguém possuiu
sem ser possuído.


I.L.
( in Logros Consentidos, Ed. & etc, 2005
Lisboa, p.18 )

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Telhados de Vidro nº 16 - ABRIL - 2012

POETA COSENDO UM BOTÃO NAS CALÇAS

está encostado a um navio porque tem o navio
na cabeça
cose o botão    poeta   cose
e a linha vai e vem   entre os dentes
linha branca
horizonte em contraste com o bege do algodão
das calças   este poeta está mais de acordo com o mar
que pesa debaixo do navio
do que muitos poetas que andaram
correndo os oceanos   escrevendo imagens salpicadas
de algas   tesouros e peixes   é um poeta
um poste de luz   é um poste de luz
e cose sem dificuldade o botão nas calças


( p. 12)


FERNANDO PESSOA NO MARTINHO DA ARCADA

ele há coisa mais natural do que um poeta amar o ovo estrelado?
é o que ouço dizer
que Pessoa para além de tudo
passando sem pressa de passar na praça maior do Tejo
sentado no café com versos e odores de mar
gostava de ovo estrelado
dizia que era um sol frito
as coisas que um poeta diz

( p. 14)


LIMPA-VIDROS

entre nós e o que queremos dizer há um vidro
ou uma lente com as suas nódoas de humanidade   as dedadas
as marcas do frio   as saraivas   o pó
um verso mais ou menos limpo de imperfeições é
aquele que podemos ler depois de um trabalho com limpa-vidros

( p. 17)


Abel Neves, Averno, Lisboa, 2012.
Direcção:
Inês Dias e Manuel de Freitas.


terça-feira, 15 de maio de 2012

O Cão Celeste



EDITORIAL


Algures entre o jornal e a revista, o Cão Celeste pretende apenas ganir, ladrar com raiva ou paixão, amar ou odiar sem peias aquilo que o mundo quotidianamente lhe dá a ver. De seis em seis meses, os leitores interessados terão notícias nossas. Mas não somos um grupo, não obedecemos a qualquer cartilha literária ou política que possa servir para classificação geral. Este é, antes de mais, um espaço de encontro entre pesoas que ainda consideram urgente o livre exercício da crítica, do pensamento ou da revolta. E é justamente em nome dessa dessa precária liberdade que prescindimos de qualquer apoio exterior, passível de condicionar os nossos gestos. Repudiamos, de modo inequívoco, o acordo ortográfico pretensamente em vigor - e fazemos questão de sublinhar, sempre que possível, essa repulsa. Mas temos outros ódios, claro - e, felizmente, afectos e devoções não menos intensos. Apesar de tudo, e ainda que de longe em longe, a lanterna de Diógenes mantém o seu esquivo e necessário fulgor.

A Direcção

domingo, 13 de maio de 2012

Sofisma cruel e desavergonhado

Então uma pessoa deve ficar muito empolgada por ser despedida do seu emprego?! Deve ser a descoberta luminosa que estas mentes hermenêuticas do governo querem transmitir

Então que tal invocar outros azares, tipo partir uma perna, ser atraiçoado pelo cônjuge ou ficar paraplégico? É sempre uma oportunidade de mudança e de experimentar novos rumos de vida...

Haja um pouco de pudor nas falácias coelheiras, coisa que ele nunca teve, pelos vistos.

irreparavelmente





( visto aqui)

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Au revoir petit Sarko



A França é sempre a França. País de gente como Pascal, Proust, Camus, Sartre, S. de Beauvoir, Rimbaud, Cézanne, etc, etc...

Vive la France!!!

sexta-feira, 4 de maio de 2012

GRITOS



É de uma ironia devastadora ver um ícone artístico do sofrimento e angústia humanos render a um anónimo (humano ?) uma quantia obscena. Faça-se uma consulta rápida à biografia do pintor e às circunstâncias da criação da obra e é caso para nos interrogarmos acerca das reais e actuais finalidades da Arte

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Ladrador



Homem do Lixo


O último a chegar à festa tem
como castigo varrer o lixo,
o subproduto da embriaguez
organizada. Náo é justo nem
injusto, é a lei dos retardatários.

A essa hora já os gastos foliões
mergulham no sono que se segue
a toda a felicidade, cientes
de que irão acordar ressacados
mas contentes por terem feito tudo
o que era humanamente possível
para se divertirem uma última vez.

Sozinho no recinto, o retardatário
dança com a sua vassoura,
recolhe sobriamente os detritos
a exaltação - preservativos,
cartazes, garrafas vazias -
e consola-se com a mentira
de ter sido poupado à desilusão.


Findo o trabalho, tem ainda tempo
para se apiedar dos vindouros,
que da festa não terão sequer notícia,
que nunca poderão participar
sequer remotamente em algo
tão aparentado com a esperança.


José Miguel Silva
In Ladrador, pág. 37, Edições Averno, Lisboa, 2012.
Nota: Integram esta edição da Averno os seguintes poetas: Ana Paula Inácio; Diogo Vaz Pinto; João Almeida; Jorge Roque; Manuel de Freitas; Miguel Martins; Rui Baião; Rui Nunes; Rui Pires Cabral e Vitor Nogueira.