segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Manuel Bandeira

(excerto)

Era terça-feira gorda. A multidão inumerável
Burburinhava. Entre clangores da fanfarra
Passavam préstitos apoteóticos.
Eram alegorias ingénuas ao gosto popular, em cores cruas.

Iam em cima empoleiradas mulheres de vida,
De peitos enormes - Vénus para caixeiros.
Figuravam deusas, - deusa disto, deusa daquilo, tontas e seminuas.

A turba, ávida de promiscuidade,
Acotovelava-se com algazarra
Aclamava-as com alarido
E, aqui e ali, virgens atiravam-lhes flores.

(do poema Sonho de uma terça-feira gorda)

in CARNAVAL (1920)

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Herberto Helder

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a acerba, funda língua portuguesa,
língua-mãe, puta de língua, que fazer dela?
escorchá-la viva, a cabra!
transá-la?
nenhum autor, nunca mais, nada,
se a mão térmica, se a técnica dessa mão,
que violência, que mansuetude!
que é que se apura da língua múltipla:
paixão verbal do mundo, ritmo, sentido?
que se foda a língua, esta ou outra,
porque o errado é sempre o certo disso


in A FACA NÃO CORTA O FOGO

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Poema inicial do livro antecedente

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FELINOS


Porque incriados,
sombra e felino
firmaram esse secreto
acordo de assassinos:
ele a figura, ela o ensina
a pisar as coisas sem feri-las.


Cláudio Neves (Brasil)

Nota: a pedido de Pilantra.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Cláudio Neves (Brasil)

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MALHADO






No gato malhado,
dito vira-lata,
a sombra invade,
milparte o gato.


Falta-lhe a linha
dorsal compacta
e o passo infalível
dos outros gatos;
falta-lhe a idéia
de contraparte:
nem bem é branca
ou negra metade
e ao todo é menor
que as manchas somadas.


É talvez assimétrico,
um antigato em seu claro-escuro
barroco, abstracto.


Não é a coisa,
mas as muitas falhas,
as muitas faltas
que lhe são inatas;
como uma idéia
despedaçada
numa palavra muitas palavras.



(do ciclo De Sombras e Gatos)

Neves, Cláudio, De sombras e vilas, Rio de Janeiro, 7Letras, 2008


Nota: Excelente poema, que nos revela num grande saber poético do manejo do verso curto, elíptico, (de contenção e contensão) uma visão muito própria do gato "rafeiro", sem raça definida.
O autor consegue evidenciar, a imagem do animal,quase plasticamente:" milparte"," negra metade", "falta-lhe a linha dorsal", etc.
Para além deste nível mais ligado à visualidade, ainda toda a densidade semântica que o poema consegue, ligada à poderosa e antiquíssima simbologia do gato, simultaneamente fidalgo e plebeu, requintado e vadio, insubmisso e meigo, doméstico e selvagem.

Releiam-se achados como: "antigato" ou "uma idéia despedaçada", ou ainda "seu claro-escuro barroco, abstracto". Note-se neste últimp exemplo, de novo, para leitores mais atentos a sugestão plástica da estética do barroco (claro-escuro) ou das assimetrias pictóricas do abstraccionismo.

O verso final pode remeter para a pluralidade de sentidos duma imagem, dum poema, da própria vida.

O pequeno ciclo, inclui ainda, os poemas:"Negro", "Siamês, "Persa".

O livro é constituído pelos seguintes ciclos:

I - INTRODIÇÃO À SOMBRA
II - DE SOMBRAS E VILAS
III-DE SOMBRAS E CATOS
IV - OS CONSTRUTORES (DOIS EXCERTOS)
V - POEMAS ESPARSOS (1990-2007)


Relembre-se que enormes poetas abordaram o tema do gato, nos seus livros : Baudelaire, Verlaine, Yeats, Rilke, Appolinaire, Ezra Pound, T. S. Eliot, Jorge Luis Borges. Paul Eluard, Manuel Bandeira, Drummond de Andrade, erc, etc.
Em Portugal: Fernando Pessoa, Jorge de Sena, Mário Cesariny, Eugénio de Andrade, Ruy Belo, Luíza Neto Jorge, Fiama Hasse Pais Brandão, João Miguel Fernandes Jorge, etc, etc.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Não conseguiram assumir o colapso dos sonhos

(frase ouvida no programa "Câmara Clara", na RTP2, a propósito da América Latina)

Pode aplicar-se a tanta gente!...Mas, se calhar têm direito a viver assim. Só que depois chamam aos outros, ácidos e pessimistas....se não, até de "direita".
Assim vai a confusão das mentes.